V de Vingança

A história se passa numa Inglaterra futurista, depois de uma guerra com os EUA, cujo poder foi tomado com uma gang liderada por um líder que é uma mistura de Adolf Hitler (1889-1945), Josef Stalin (1878-1953) e tem a cara de Vladmir Lênin (1870-1924). Claro que o discurso do tirano tem como mote falar mal da América. Não falta nem o pistoleiro Lavrenti Pavlovitch Beria (1899-1953), chefe da polícia secreta. É o protótipo dos tiranos. O “Chanceler” (como não pensar em Hitler?) só aparece em imagens televisas, exceto quando da sua execução, no final. Tudo que escapa à homogeneização é perseguido e destruído. O medo é a base real de poder do governo. O clima lembra o 1984, de George Orwell (1903-1950), com o Grande Irmão a espiar a vida de todos pelos olhos eletrônicos. É seguramente o filme político mais expressivo que vi desde a série do “Godfather”.

Os diálogos são sheakespearianos. No filme sublinha-se que coincidências não são meras coincidências. O próprio filme, se tomarmos o que se passa na América Latina, e no Brasil, não poderia ter vindo em melhor hora para alertar-nos a todos dos perigos da tirania a avizinhar-se, que provoca deliberadamente o caos para justificar-se e exercer seu poder maldito. Depois da Segunda Feira Negra que São Paulo viveu, com o caos a imperar – e preciso dizer aos meus leitores que há uma estranha coincidência entre a baderna dos bandidos e a publicação pela revista “Veja” dos extratos bancários das contas no exterior dos maiorais da Nação – são os mesmos ineptos governantes que estão agora acusando a polícia paulista de excessos. A película como que descreve a nossa realidade.

Mas da mais negra tiraria e da mais tenebrosa desesperança brota o indivíduo que não teme a morte, que é batizado pelo fogo – no personagem masculino – e pela água, na sua versão feminina. Aí vencem o medo dentro de si e tornam-se os campeões na luta contra os tiranos, e vencem. Sabem, sabem que sabem e sabem de si. Tornam-se super-homens, além das massas, além do homém-médio. O sofrimento extremo deu-lhes a têmpera dos heróis.

“Os governos é que deveriam temer o povo, não o povo o governo”, uma frase lapidar. O homem da máscara é na verdade o indivíduo diferenciado que há em cada ser humano. Quando ele aparece o poder estatal se apequena, é destruído. A cena em que as Forças Armadas não têm coragem para disparar contra seu próprio povo, em movimento pacífico, é impressionante. O ator que faz o papel do general mostra a ambivalência do comandante que não pode dar a ordem mais nefanda, a de aniquilar os seus compatriotas.

A destruição do prédio do parlamento é um símbolo que mostra que a democracia, quando aparelhada para a tirania, não está mais representada no Poder Legislativo. Torna-se ele outro símbolo, o da opressão, e precisa ser destruído de forma impiedosa. Uma leitura rasa dessa seqüência poderia dizer que os autores do filme não gostam da democracia. Não vi assim, é exatamente o contrário. A democracia só está no parlamento quando ele é legítimo e se subordina aos valores próprios da sociedade aberta.

O filme é uma obra de arte notável também pela sua trilha musical. A Abertura do 1812, de Pyotr Tchaikovsky (1840-1893), que é tocada em dois momentos, torna sublimes e espetaculares as cenas de destruição que se desenrolam. O encontro do mascarado com o chefe da polícia secreta é marcado pelo toque da Quinta Sinfonia de Ludwig van Beethoven (1770-1827). Momento mágico, uma citação de Stanley Kubrick (1928-1999), que ornou o seu filme “2001: Uma odisséia no espaço” com outra notável peça musical, o Danúbio Azul de Johann Strauss (1825-1899).

O personagem mascarado sobrevive no submundo lotado de livros e obras de arte antigas, uma síntese dos tesouros culturais do Ocidente. Os restos de Israel. Consciência é preservação da tradição. Ele luta com uma armadura. Veste a persona dos europeus nobres dos tempos antigos, que eram nobres precisamente porque conquistavam a distinção no campo de batalha, em defesa de seus compatriotas mais fracos e mais pobres. Quem “sabe” é aquele que carrega o peso de todo nosso tesouro cultural. É isso que pode tornar um homem-massa um indivíduo diferenciado. Pelo conhecimento. Conhecer-se a si mesmo impõe conhecer os tesouros da tradição.

Se Alan Moore, autor do texto original, tivesse feito o roteiro, seria um outro filme. Os Irmãos Wachowski é que deram o toque final. Esperança, mais que carne, por baixo da armadura!

Um filme tão espetacular como é o "V" de Vingança está a exigir de mim alguns comentários adicionais. Quero por primeiro sublinhar o caráter duplo dos personagens principais: “V” e “Evey” formam uma totalidade. O personagem feminino entra na cena inaugural fazendo a narrativa de seu encontro com o seu duplo. A mulher representa a Verdade, enquanto que o homem o guerreiro que a defende.

Não há romance entre os personagens principais, pois são figuras arquetípicas, uma duplicidade. A forma pura masculina e feminina de heroísmo. A Verdade e seu Guerreiro.

A narrativa mostra ambos se preparando para sair à rua, para viver a sua saga, ele se armando e ela se vestindo, como é próprio do ser feminino, sua arma. O pano de fundo é o locutor governamental fazendo sua exaltação antiamericana e sua profissão de falsa fé e de falso moralismo. Sua propaganda política mentirosa. Na rua Evey é surpreendida pelo toque de recolher “para a proteção do povo”, como se a morte da liberdade protegesse alguém de qualquer coisa. Flagrada pelos esbirros da ditadura Evey sofre a ameaça de estupro, abortada pelo surgimento providencial do guerreiro “V”. Essa imagem não poderia ser mais delineadora do que se passa nos regimes totalitário, onde a liberdade é estuprada rotineiramente.

Uma das falas capitais da película é quando “V” se pergunta quem são os culpados e manda que todos se olhem no espelho. A culpa é de todos e de cada um. Nessa cena imaginei o que acontece no Brasil. Qualquer que seja o desfecho do processo que estamos a viver não há inocentes. Todos e cada um de nós temos a nossa parte de responsabilidade por colocar no poder a quadrilha criminosa de que nos falou o procurador-geral, em sua denúncia. Não há inocentes.

“Uma Idéia não pode ser assassinada”, a idéia de liberdade. É uma frase imortal. Notável como o guerreiro vingador se vale exclusivamente de armas brancas, de punhais vingadores. “Há uma violência que trabalha a favor do Bem” (faço citações de memória) e é aquela que vinga os sacrificados pelos totalitários. Na verdade pode-se falar de uma violência defensiva do Bem, que pode ser preventiva, como foi por aqui em 1964, e pode ser vingadora como vimos na queda dos ditadores da Albânia e da Romênia.

“Remember, remember, the fifth November”. Quase gritei no cinema: Viva 21 de abril! Temos também as nossas datas sangrentas em memória da liberdade.

“V” vai matando cada um de seus carrascos, que se revelam os líderes do partido totalitário que tomou o poder. Um deles é um padre pedófilo, que na verdade não é padre coisa nenhuma, é um militante infiltrado na Igreja que vira bispo porque é dirigente partidário e malfeitor enriquecido no poder. Outro, a cientista imoral que não hesitou em fazer de seus compatriotas cobaias humanas, a fim de obter seus objetivos torpes: semear o mal para vender o bem, a malvadez satânica personificada em um rosto sereno.

Claro, o sistema de poder totalitário exige uma polícia política ativa. Quem cai nas suas garras não escapa. A fala do ditador mandando seu Beria prender o que ele chamou de terrorista é reveladora: “Pegue-o o mostre o que é o verdadeiro terror”.

A cena final é emocionante. A multidão como que desfila diante das forças militares, em inversão do que se poderia esperar habitualmente. As Forças Armadas não podem agir contra seu próprio povo. Correu-me uma lágrima no canto do olho, porque não dizer? É um fecho surpreendente para uma história surpreendente.

Relatei acima algumas citações de Stanley Kubrick, mas não posso deixar de sublinhar o substrato principal, que permeia todo o filme: a história do Conde de Monte Cristo, homem que sofreu a injustiça mais atroz, tendo sido atirado impiedosamente às masmorras. Mas ele é forte e vence, não sem antes mergulhar no mais fundo de sua alma e por isso é recompensado pelo tesouro = riqueza interior buscada quase ao custo da própria vida. Torna-se um indivíduo no exato sentido da expressão. Tiraram-lhe tudo: esposa, filho, honra, bens e até o nome. Ele ficou só com a sua solidão e a sua sede de justiça: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”.

A história de Alexandre Dumas (1802-1870) é singular porque os que praticaram a maldade estão além dos poderes desse mundo, pois são eles mesmos os poderes: têm as alavancas do Estado à disposição e também o poder do dinheiro. Estão a salvo da Justiça, exceto a divina, cujo instrumento é a própria vítima vingadora. A violência usada para o Bem. “Toda ação gera uma reação igual e contrária”, frase que no contexto é lapidar. Aquele que sofre no limite do sofrimento, a quem só restou o fio de vida, esse perde o medo de qualquer coisa, pois nada mais tem a perder. Foi batizado pelo fogo e pela água. Torna-se o vingador, semelhante a um Deus encarnado: “Minha será a vingança, eu é que retribuirei”.

Só há felicidade no final, quando cada um pode escolher a sua árvore, o seu justo lugar no mundo. Num dos trechos vemos uma saborosa citação de Macbeth, de William Shakespeare (1564-1616), peça que se singulariza pelo fato de a protagonista ser do sexo feminino, a que pensa, planeja, mas não tem como agir, age através do marido, seu instrumento de ação. Assim é Evey, o duplo feminino de “V”. Vejamos o trecho citado: - “Estás temeroso de ser o mesmo em teu próprio ato e valor de que em teu desejo? Não terás o que mais estimas, o ornamento da vida, e viverás um covarde em tua própria estima, deixando ‘Eu não posso’ ultrapassar ‘eu farei’, como o pobre gato no adágio?”... “És um homem”.

Uma mulher falando assim ao seu homem impele-o para os embates gloriosos e desconfio que a maioria das mulheres fazem isso todos os dias. Não basta ser um mesquinho homem, é preciso se superar, alcançar o cume dos heróis, ainda que nas coisas do cotidiano. O cartão de visitas da mulher é a sua beleza, a do homem a virtude da coragem. Esse é “V”, a mão que empunha a faca vingadora e justiceira.

O heroísmo final, momento em que “V” se dá em sacrifício para completar o exercício da justiça contra os poderosos, é sublime. Creedy, o Beria do filme, a besta assassina, atira e fura mortalmente a sua armadura. “V”, todavia, sobrevive o bastante para realizar a sua vendetta. E diz uma frase lapidar: “Por baixo da armadura não está apenas carne, mas Esperança” (cito de memória). Haverá uma maneira mais bela e poética, sintética, de alguém se dizer cristão? Como no Matrix, os Irmãos Wachowski deixam claro sua inspiração cristã, pois não se pode falar da civilização ocidental, como o faz o filme, sem falar do cristianismo de forma afirmativa e maiúscula.

O gay no filme significa duas coisas. Primeiro, que uma sociedade aberta deve tolerar os diferentes, mesmo que esses sejam seus inimigos declarados. Os totalitários querem a uniformidade. O filme é sensacional precisamente por sublinhar essa lado do totalitarismo. A questão das lésbicas é uma historieta paralela, a enfatizar a necessidade da tolerância.

Em segundo, é que está associado ao gay tudo que há de ruim: Corão, suásticas nazistas, deformação psíquica. O gay não é pintado favoravelmente, mas é posto como vítima da uniformização totalitária, o que é correto. O gay do filme é também um totalitário, não luta pela liberdade, mas pela substituição do totalitarismo por outro. Isso é simplesmente genial. Nem os movimentos gays perceberam o malho que tomaram. Sem falar que associar o Corão com gay foi audaz.

Para mim o charme mais encantador está na alusão ao Conde de Monte Cristo. Que é o Monte Cristo? O Gólgota. O nobre (o indivíduo) que acha no Gólgota a sua liberdade e o seu tesouro, a sua Justiça. O Gólgota, o lugar do Santo Suplício. Mais cristão que isso só se ele elevasse lá o Cruzeiro

Eis o filme. Vê-lo é um deleite para o espírito, uma instrumento de inspiração, um consolo para quem, como nós brasileiros, está a flertar sem pudor com o totalitarismo.

por Nivaldo Cordeiro
Vice-Presidente do Conselho Fiscal do CIEEP.

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